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Pedi para a Vivian Thomaz ler o conto "Cheiro de Tinta". Ela leu e escreveu um dos comentários mais emocionantes que eu já recebi sobre um texto.

 

 

Wigvan,

 

tudo o que eu vou te dizer agora é de uma sinceridade profunda. Em nenhum momento eu tentei amenizar as palavras ou enfeitar pra te fazer sentir melhor. São palavras honestas.

 

Eu adoro o jeito que você escreve. Amo a maneira como você transforma tudo em poesia. Inclusive, eu sinto que o seu conto (principalmente a introdução) seria facilmente transformado em poema. Gosto das frases curtas do primeiro parágrafo, gosto da poesia naturalmente impregnada em cada palavra. Gosto de como você sempre caracteriza as coisas um jeito espaçado. Você deixa a sensação de que não tem dificuldade pra escrever. Acho lindo a maneira com que você pega palavras simples e dá sentidos complexos, como você reorganiza as ideias de um jeito que quem lê tudo num fôlego só, precisa parar e pensar "opa, acho que essa palavra aqui não quer dizer isso, não, deixa eu ler de novo."

 

 

"Uma das mulheres, por exemplo, uma noite sentiu que ele foi tão forte que: puff! Explodiu seu coração. Por isso ela não tinha o seio esquerdo e amargura de não poder sentir o coração pulando quando ganhava um beijo." Eu não preciso dizer que isso acabou comigo, né? Li, sem mentira nenhuma, 15 vezes. Guardei no coração.

 

 

Meu doeu profundamente os relatos de racismo. Parei de ler várias vezes, quando eu voltava tinha mais, parava de novo, até achar que já dava pra continuar. Continuava e mais racismo, mais misoginia e um incômodo sem fim. É incrível como esse conto tem a inocência de uma criança, mas ao mesmo tempo tudo é relatado com tanta sinceridade e tanta honestidade que chega a ser cômico e duramente ácido em algumas partes.

 

Não sei dizer como e nem onde, mas tem malícia. E eu consigo imaginar, tranquilamente, uma criança narrando tudo isso, sem pausas bem feitas, sem saber direito como conduzir uma história, contando no calor do momento, soltando tudo de uma vez. E eu acho que muito dessa impressão se dá pela ausência de indicadores da fala, sabe? Mas eu gostei pra caralho disso!

 

É tudo muito natural, mas de uma profundidade amarga e assustadora.

 

Chorei e não foi pouco. Chorei e não foi só uma vez.

 

Chorei na primeira vez que li e nas outras quatro vezes que se seguiram. Eu não esperava pelo final, não esperava pelo desenrolar, não esperava por nada.

 

Achei incrível a progressão do texto, a forma como você traz uma introdução reflexiva e atemporal, mas vai contando a história de um jeito pequeno e despretensioso, até se tornar uma coisa grande e explosiva.

 

A leitura é corrida porque o texto é fluido e estrategicamente bem construído. Mas ao mesmo tempo o sentido é difícil, é duro, é horrível. Fiquei mexida, com um aperto no peito que não passou com facilidade. Demorei pra me recuperar. Não é fácil ler algo que te corta, te abre e te expõe. Não é fácil ficar indiferente quando você se vê em cada linha, em cada agressão, quando você reconhece os personagens e as situações. Porque você sabe qual é o sentimento, sabe como dói, como machuca. Não sei direito como explicar, mas ao mesmo tempo que o seu estilo é simples, tem algo de tão, mas tão, tão forte que simplesmente me quebrou. De verdade, Wigvan. É contrastante ver o texto corrido, mas cheio de significados duros. A inocência da criança me aqueceu e divertiu, só que ver e ir além: enxergar a Célia, me sufocou. O seu texto me chutou as costelas e me socou o estômago. Me invadiu, me rasgou, me atravessou. Me fez lembrar do passado. Não posso dizer "ai que lindo!"- porque de lindo, ele não tem nada. Tem um gosto ácido. Aflição, angústia, ansiedade, sofrimento... tudo. E ânsia.

 

 

Ânsia.

 

Você mexe com as pessoas, Wigvan.

Vivian

Thomaz

 

 

Wigvan,

 

É curioso. Um filósofo neerlandês dizia que quando Pedro fala sobre Paulo, a gente sabe mais do primeiro que do segundo.

 

Mas no teu conto isso não procede porque o narrador é atravessado pela experiência dos outros de tal forma que a gente se desloca entre perspectivas: ora dele, ora dos outros personagens, ora de um eu oculto que vaga pelo universo da narrativa de uma maneira quase niilista, como se não se sujeitasse às lógicas microcósmicas – mas não por isso superficiais – da chamada Rua G.

 

Então, a cada parágrafo eu sinto que vou sabendo muito menos sobre o menino dessa rua, o que já começa no fato de que ele não tem nome, e parece que ele se torna uma espécie de espírito da própria rua, que vaga por ela recolhendo as memórias e as experiências dos seus moradores de forma silenciosa e oculta.

 

De repente, a banalidade com a qual toda infância costuma ser tratada se desfaz completamente. E o menino, que a tudo olha quase pelo rés-do-chão como qualquer outra criança, vai se tornando ponto de transição entre as perspectivas. É ele quem amarra os sentidos.

thales H.

Piimenta

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